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Guerra e futebol na Ucrânia – Sonhos destruídos e a Teoria de Darwin


Os prédios ainda estavam fumegantes. A artilharia russa havia bombardeado a região. Na rua, crianças brincavam perto do que restava de um parquinho. As pessoas não queriam ser evacuadas. Lá nasceram, cresceram, lá vão morrer. De velhice. Ou nas mãos do inimigo. Em alguma parte do mesmo país, acontecia uma partida de futebol. Que tinha que ser interrompida: novo ataque russo. Todos para o abrigo mais próximo. A realidade de guerra vira rotina na Ucrânia. O esporte mais popular do mundo segue como esperança. Em diversas frentes. Por mais insignificante que pareça mediante a tantas outras prioridades. 

No momento em que todos os olhos estão voltados para o que acontece no Oriente Médio, se faz necessário falar de Ucrânia. “O que aconteceu hoje em Israel acontece na Ucrânia todos os dias há dois anos”. A frase me fez refletir. O que vem a seguir, me fez encarar outra realidade. Como um golpe no estômago. Vazio, sem comida. Sem sonhos. Sem esperança. Mas com resistência. 

A frase é de David Kirichenko, jornalista freelancer ucraniano/estadunidense que escreve para diversos portais de notícias da América do Norte, da Europa e também para institutos de pesquisas. David, junto com outros ucranianos, jornalistas, jogadores, dirigentes, técnicos, tenta me ajudar a contar essa história. Ou melhor, David é, com seus compatriotas, a história. Testemunha ocular da desumanidade. Mas ao mesmo tempo da esperança, no meio do caos. Da resistência, no meio do desespero. 

Contexto

David conversou com a reportagem de oGol de Seattle, Estados Unidos. Filho de refugiados de guerra, nasceu nos Estados Unidos, mas passou a infância na Crimeia. Quando lá voltou, mais recentemente, tudo estava mudado. 

“Eu era criança, passava meu tempo em Donetsk, até mesmo na Crimeia, a família do meu pai é de Donbas. E quando fui lá em 2017, foi tão frustrante. Antes de 2022, muita gente não entendia o que se passava na Ucrânia antes de 2014”, disse. 

A invasão russa na Ucrânia começou ainda em 2014, na Crimeia. Em fevereiro de 2022, os russos lançaram uma invasão em larga escala que avançou em solo ucraniano. Até hoje, o conflito segue sem resolução, ceifando sonhos e a vida de milhares de pessoas. Deixa desalojados, deixa traumas, deixa (de lado) a humanidade. 

David levando mantimentos a soldados em Donbas em 2022 @Arquivo Pessoal

Para entender um pouco do conflito, temos de voltar anos e anos na história. Dos czares russos até Stalin, e enfim Putin, a tensão entre russos e ucranianos só aumentou. Como um barril de pólvora. David nos faz viajar no tempo para termos o contexto necessário para entender o que acontece nos dias de hoje. 

“Eu estava lendo em Harvard o livro ‘A guerra russo-ucraniana: o retorno da história’, do Serhii Plokhii, e fala sobre a primeira ameaça e vai até o século 19, quando a Rússia enfrentou e não conseguiu derrotar o nacionalismo. Começou com o nacionalismo polaco em 1830, que estava ameaçando o império russo. Nacionalismo como uma ideia, uma causa, não apenas um exército que você pode derrotar. É um exército de ideias, e você não pode derrotar isso. E então os ucranianos foram inspirados e criaram seu próprio movimento nacionalista, em 1860”, disse, como linha de largada. 

David citou o banimento do ensino do idioma ucraniano nas universidades, e até mesmo a negligência do mesmo por parte de autoridades, como uma ferramenta de opressão da identidade cultural dos ucranianos. “O ministro do interior russo (Pyotr Valuev) declarou que: não existe o ucraniano, só existe o ‘little russian‘ (termo diminutivo que assimilava a Ucrânia a um território inferior da Rússia). A língua ucraniana não existe’ (declaração feita em 1863). 

Nos tempos do líder soviético Joseph Stalin, os ucranianos foram relegados à fome, em episódio que ficou conhecido como Holodomor, que em tradução literal é morte por fome. 

“(Stalin) queria industrializar a União Soviética, e para ter esse dinheiro, ele tinha que tirar dos grãos, que estavam com os camponeses ucranianos. Mas os camponeses ucranianos eram muito independentes, eles tinham a própria língua, os próprios costumes. Stalin viu que a única forma de manter os ucranianos como um produto da União Soviética era deixar milhões deles morrerem de fome, quase que aniquilar inteiramente a identidade ucraniana”, explicou.

Até hoje, os ucranianos celebram o “Dia da Memória ao Holodomor”, todo ano no quarto sábado de novembro. A BBC britânica chegou a qualificar o período como um “massacre silencioso“. Segundo estimativas, entre três e cinco milhões de ucranianos perderam a vida entre 1932 e 1933, período do Holodomor.

Com o fim da União Soviética, as lideranças russas buscaram um controle velado da Ucrânia. A Revolução Laranja, porém, ligou o sinal de alerta de Putin. Tudo começou ainda no início do século, quando o então presidente Leonid Kuchma foi ligado ao assassinato do jornalista Georgiy Gongadze. Em 2004, Putin visitou a Ucrânia inúmeras vezes, apoiando o candidato Viktor Yanukovych, então primeiro ministro e também endossado por Kuchma. O candidato da oposição, Viktor Yushchenk, sofrera uma tentativa de assassinado por envenenamento durante a disputa eleitoral. Yushchenk sobreviveu, apesar de ter até hoje o rosto desfigurado. 

O resultado inicial deu a vitória para Yanukovych, em meio a diversas denúncias de fraude eleitoral. Entre o fim de 2004 e o início de 2005, uma revolta popular pediu a recontagem dos votos de uma eleição marcada pela interferência russa. O movimento Revolução Laranja, que usava as cores da campanha de Yushchenk, foi às ruas. O período ficou marcado pela violência das autoridades, prisão de revoltosos, mas, ao mesmo tempo, pela recontagem dos votos. Yushchenk foi eleito o terceiro presidente da Ucrânia, ficando no cargo até 2010. 

“Putin ficou tão chocado por isso e radicalizou a política exterior da Rússia, que se tornou completamente agressiva”, começou por analisar Kirichenko. 

qEra como o lugar mais próximo do inferno que você poderia estar na terra (…) Era muito difícil processar mentalmente o que você vê

David Kirichenko

“O conselheiro da segurança de Jimmy Carter (ex-presidente dos EUA), Zbigniew Brzezinski, disse algo como: ‘a Rússia com a Ucrânia é um império, e sem a Ucrânia é apenas a Rússia’. A identidade nacional moderna da Rússia é construída na ideia que eles podem colonizar e dominar os vizinhos deles. Interessante que a Rússia iniciou o seu projeto de criação de identidade nacional no momento em que conduziu a escalada da invasão da Ucrânia, em 2022, porque a Rússia, nos últimos anos, viu ela mesma como um império, e a Ucrânia como parte desse império”, continuou. 

Depois de anexar ao seu território a região da Crimeia, ocupada desde 2014, a Rússia ampliou a escala de invasão em território ucraniano em fevereiro de 2022, e tentou tomar, inclusive, a capital Kyiv. 

Kyiv ou Kiev? 

David fez questão de me corrigir quando, em uma mensagem de texto, escrevi Kiev. Apesar de ainda ser usada como principal forma gráfica para se referir a capital ucraniana, Kiev é a grafia russa. Pelo Império russo, que avançou sob a Ucrânia e chegou a proibir, como vimos, a língua ucraniana no território, o nome da capital foi espalhado pelo mundo como Kiev. 

Com a criação da Ucrânia após o fim da União Soviética, o nome Kyiv voltou a ganhar força. Em 1995, o governo local obrigou a grafia e montou uma campanha para ganhar aceitação global para o nome. 

Usar Kyiv, e não Kiev, é, portanto, um ato político de reconhecimento da soberania ucraniana. 

Sonhos destruídos e a Teoria de Darwin

David Kirichenko viu de perto a invasão em larga escala dos russos. Ele esteve como voluntário na linha de frente, como tradutor na fronteira com a Romênia, e também em outras cidades fronteiriças com a missão de evacuar locais em ataque. Os relatos não deixam dúvidas sobre o que ocorre no dia a dia da guerra. Em Bakhmut, houve o que ficou conhecido como “A Batalha de Bakhmut”. David nunca havia visto nada parecido. 

“Era como o lugar mais próximo do inferno que você poderia estar na terra. Você dirigia na cidade, e você via fumaça emergindo dela, a cidade estava em chamas. Escoltas militares levavam a gente até as cidades, e aí você entra lá, entrega os kits de primeiros socorros obrigatórios, e aí alguns prédios ainda tem muita fumaça dentro deles, porque tinham acabado de ser atingidos. Você sente o cheiro dos corpos de pessoas mortas em decomposição dentro dos prédios, e do lado há mísseis russos que não explodiram. É realmente muito difícil processar mentalmente o que você vê lá, eu não poderia imaginar que atrás dessa artilharia havia soldados russos que sabiam que estavam mirando em civis, e em seu próprio livre arbítrio decide carregar as munições e atirar para matar civis”, começou a contar, enquanto eu ouvia com um misto de incredulidade e espanto.  

“Eu lembro que tinha essa pessoa mais velha que me pediu: ‘Você pode me ajudar a enterrar esses corpos’? Eu falei que não, que minha missão era entregar os kits de primeiros socorros, colocar pessoas na van e evacuar. E aí os russos começaram a bombardear a área, e todo mundo estava correndo para se proteger. Pouco antes disso, você está ouvindo explosões por toda a parte, e você vê crianças brincando no parquinho. Os prédios ao redor delas estão ainda com fumaças, dos ataques da artilharia, e você vê que as pessoas se adaptam a todo o tipo de coisa, essa coisa louca, inclusive as crianças”. 

Como diz a Teoria de Darwin, “os organismos mais bem adaptados ao meio têm maiores chances de sobrevivência do que os menos adaptados, deixando um número maior de descendentes”.  A evolução só veio com uma maior capacidade adaptativa aos cenários mais adversos. E assim segue. 

David entregava kits de primeiros socorros para os sobreviventes, na medida que tentava evacuá-los. Mas não era sempre que conseguia.

“Algumas pessoas seguiam com as vidas delas até o prédio de fato não existir mais. Então você fala com elas, e elas dizem: ‘Eu nasci aqui, eu nunca vou sair. Vou morrer aqui'”.

David perdeu familiares, amigos, e colegas que, como ele, estiveram na linha de frente tentando ajudar pessoas. Ajudar pessoas no pior momento das vidas delas. Se elas tivessem a sorte de estar vivas.  

“É triste o que as pessoas estão tendo que lidar. Você tem outras cidades ucranianas fora da linha de frente que estão lotadas de refugiados gritando por socorro. A escala disso, com milhões e milhões de refugiados. Até parte da minha família do leste da Ucrânia, eles não têm uma casa para voltar, porque foi tudo dizimado. As bases da casa não estão nem mais de pé. Alguns deles estão refugiados no oeste da Ucrânia, outros na Polônia, Alemanha… Perdemos membros da família e muitos amigos. E continuamos a perder. Mesmo pessoas que eu conheci nas minhas viagens anteriores, soldados que eu fiz voluntariado junto, pessoas incríveis… Aí você descobre semanas depois que eles morrem. Isso machuca muito”, lamentou. 

Há espaço para o futebol? 

Ao longo da conversa, me perguntei diversas vezes: há espaço para falar de futebol com esse “cara”? Mas entendi uma coisa. Não há futebol sem política na Ucrânia. Não há dissociação entre esporte e guerra. Os dois coabitam o dia a dia da população. E o esporte segue como uma ferramenta necessária, mesmo em tempos de guerra. 

“Para os ucranianos, o esporte não é apenas esporte. É algo além, tem muito simbolismo e mesmo política envolvidos”, resumiu David. Tudo em uma nova realidade. 

“Às vezes, se os russos estão bombardeando a cidade, o jogo tem de ser pausado. É normal uma partida ser paralisada e todo mundo correr para se proteger em um abrigo. Quando tudo acaba, eles voltam e o jogo recomeça”, explicou. 

Refletindo sobre o impacto da guerra no futebol ucraniano, David usou o Metalist 1925 como exemplo. O clube teve o CT atingido por mísseis russos e quase acabou após ter dificuldades para se reerguer. “A guerra foi absolutamente devastadora para o futebol ucraniano”.

Um passeio pela história do futebol ucraniano 

Ao longo da série de reportagens, vamos continuar com relatos de esportistas, dirigentes e torcedores locais sobre como a guerra devastou o futebol, mas também de como o futebol ucraniano, assim como o país todo, é exemplo de resistência. Mas antes, como é o intuito da matéria abre-alas, vamos trazer o contexto necessário. 

No dia seguinte da conversa com David, entrevistei Andrew Todos, jornalista britânico, de família ucraniana, que é especialista em futebol da Ucrânia. Andrew é criador do site Zorya Londonsk, e apresentador de podcast de mesmo nome sobre o futebol ucraniano. É absolutamente o melhor local para buscar informações sobre o futebol ucraniano se você não fala ucraniano (e entende, pelo menos o básico, de inglês). 

Disputa de bola na final da Euro de 1988 @Getty /

Andrew toma como ponto de partida, para nos contar um pouco sobre a história do futebol ucraniano, a última competição oficial da seleção da União Soviética. Os soviéticos chegaram na final da Euro de 1988 com sete, dos 11 titulares, sendo ucranianos. Na final, derrota por 2 a 0 para a Holanda, nove dos 13 atletas do selecionado soviético em campo nasceram em território ucraniano. Ou seja, a base do sucesso do futebol soviético era ucraniana. Mas isso não foi levado em consideração pela Fifa quando da criação da seleção ucraniana, após o fim da União Soviética. 

 “A federação de futebol da Ucrânia foi fundada em 1991, e se tornou um membro da Fifa e da Uefa em 1992. O problema foi que a Fifa e a Uefa deu os créditos do sucesso da União Soviética para a Rússia. A Rússia ficou com os pontos no ranking, apesar de a Ucrânia ter formado a base do time. A Ucrânia e as outras ex-nações soviéticas tiveram de começar de baixo. As primeiras Eliminatórias foram difíceis, porque a seleção ficou acho que no pote 5, e teve de subir aos poucos”, explicou Andrew. 

O primeiro jogo da história da seleção ucraniana aconteceu em 28 de abril de 1992, em Uzhhorod. Cerca de 11 mil pessoas estiveram presentes ao estádio, a maior parte delas torcendo pela seleção húngara, que venceu por 3 a 1. 

Andrew lembra que, do time que jogou essa partida, muitos atletas resolveram “virar a casaca” e passaram a atuar pela seleção russa, inclusive Oleg Salenko, artilheiro da Copa de 1994. 

“Se você fosse nascido na União Soviética, você poderia jogar em qualquer time que era ex-nação soviética. Oleg Salenko, artilheiro da Copa de 1994, nos Estados Unidos, nasceu na Rússia. Jogou a maior parte da carreira no Dínamo de Kyiv. E estava no jogo de estreia da seleção ucraniana. Mas, quando descobriu a queda no ranking, ele trocou pela Rússia para poder jogar pela Rússia. Foi o mesmo com Andrei Kanchelskis, apesar de ele não ter ligações com a Rússia. Ele nasceu na Ucrânia (em Kirovohrad) e com pais lituanos, mas só porque nasceu na União Soviética, mudou. Onopko, o famoso defensor ‘russo’, nasceu em Luhansk. Levou até, provavelmente, 1995, 1996, até a Ucrânia conseguir se reconstruir como time nacional”, contou. 

No futebol de clubes, a mudança não afetou tanto. O primeiro campeão da recém-criada Premier League da Ucrânia foi o Tavriya, único time fora Shakhtar e Dínamo a já levantar o troféu. Contaremos, em um dos capítulos dessa série, a história do Tavriya, que, devido a guerra, acabou extinto. 

Desde então, Dínamo e Shakhtar dominam, com direito a campanhas interessantes internacionalmente. Ainda na década de 1990, na temporada 1998/99, o Dínamo chegou até a semifinal da Champions, eliminando nas quartas o poderoso Real Madrid, maior campeão do torneio, com show de Shevchenko. 

O Shakhtar também teve seus momentos de brilho na Champions, chegou a vencer o Real Madrid no Bernabéu, e já chegou algumas vezes ao mata-mata, alcançando até as quartas de final. O Shakhtar será destaque em outra matéria da série de reportagens. 

Hoje em dia, porém, a situação do futebol ucraniano é bem diferente. O Dínamo não conta com craques como Shevchenko. O Shakhtar não consegue investir milhões nas promessas brasileiras. Muitas equipes dão as graças apenas por se manterem em atividade. Outras nem isso conseguem. 

“Quanto mais longa for a guerra, mais difícil vai ser. Há clubes ucranianos bons, como o FC Mariupol. Essa cidade foi apagada do mapa pelos russos. O FC Desna Chernihiv, no norte da Ucrânia, teve o estádio bombardeado pelos russos. Muitos times da primeira divisão acabaram caindo, e não dá para saber quando eles vão voltar, se vão voltar. O deprimente é que o quanto mais a guerra se arrasta, mais clubes vão colapsar, a estrutura do futebol irá se deteriorar”, refletiu David. 



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